NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, Da Árvore da Montanha
No que podemos utilizar da filosofia enquanto vida, em que podemos usá-la em oposição à religião que promete uma salvação por alienação?
Se a usarmos como antípoda da religião cristã, primeiro, a religião impossível que usa como mandamento amar o próximo como a si mesmo. Ou seja, em termos mais realistas, sermos bons.
Dostoievski ao escrever seu livro O Idiota, nos mostrou que um homem bom nesse mundo cruel sempre será consumido pela deslealdade, bom é sinônimo de idiotice, portanto, como Nietzsche disse, nesse mundo só houve um cristão, e esse morreu na cruz. Visto dessa maneira, Cristo nada mais foi que um idiota, no sentido de bom. Legou-nos uma doutrina na qual, todos fingem aceitar mesmo sabendo ser inviável.
A moral cristã é impossível, pois o cristão que diz amar seu próximo, está preocupado com o espiritual, a única maneira de termos uma relação com o nosso próximo suportável e até agradável é pela ética humana, que ultrapassa a burocracia, a moral, a lei, que faz de nós números e objetos. Se a obra de Kafka fosse ensinada nas escolas , por nossos pais, ao invés da bíblia, trataríamos os outros como a nós mesmo, ou seja, humanos e não coitados que um dia receberão uma recompensa divina.
Essa metafísica cristã, que Nietzsche já acusava Sócrates de tê-la inventado, quando mudou o rumo dos filósofos pré-socráticos, ou da maneira de viver dos gregos anterior a metafísica criada pelo ateniense, este ao estabelecer dois mundos, inteligível e sensível, criou verdades, valores universais e superiores, e com isso, pôs limites à vida. Nietzsche em outro momento se refere ao cristianismo como platonismo para o povo. Com essa invenção socrática que veio até a nós pelos escritos de Platão, fez uma ruptura na maneira de viver dos gregos que viviam a vida sem a ideia do além-vida, do extra- mundo.
Os pré-socráticos que faziam dos sofrimentos a arte da tragédia, mesmo a vida sendo dura, mesmo sob a iminência da invasão dos inimigos, mesmo sob as dificuldades eles criavam: o teatro, os cânones do ideal de beleza, a filosofia, a democracia, os deuses se confrontando com os homens, produziam arte para suportar a existência. A vida era aquilo como se apresentava, o vir-a-ser necessário, e com a invenção do platonismo e do cristianismo, o devir passou a ser negado. Quando a vida se apresenta a nós com sua realidade trágica, artística, o homem de rebanho se refugia como uma criança que apanhou na rua a um Deus, um salvador, que irá socorrê-lo, mesmo essa criança sendo mal criada e não seguindo os mandamentos desse pai.
O grego aceitava, revertia o sofrimento para a criação, como relata Plutarco, quando disseram a Leônidas, que as flechas dos soldados de Xerxes, se lançadas, esconderiam a luz do sol, e no qual obteve a resposta do herói: “Então Combateremos à sombra".
Como no termo cunhado por Nietzsche: "Vontade de potência", dizer não para afirmar um sim, como a beleza de superar a si mesmo, fazer do sofrimento o instinto de uma força afirmativa e criadora, dionisíaca por excelência: Dionísio sofredor dos mistérios, aquele deus que experimenta em si o sofrimento da individualização.
Afinal, ninguém é livre dos constrangimentos vindos desse Deus cristão, pois segundo sua palavra, nenhuma folha cai de uma árvore sem a sua permissão, portanto, ninguém viverá sem os constrangimentos que a vida nos apresenta. Spinoza já poetizava dizendo que só Deus age sem constrangimento, e bem próximo de Nietzsche e dos gregos, ele dizia que o homem só é livre quando cria sua própria vida, se libertando das paixões vindas do mundo exterior. Neste seguimento Schopenhauer viu no pessimismo a saída, como ele disse: “Uma vida sem sofrimento é desumana”, e via a salvação com a fuga para o nada, ou a negação total da vida. Nietzsche viu a vida como criação e destruição e em vez da fuga, o sofrimento como delícia, como musa de criação do artista, do que faz de sua vida uma obra de arte.
Essa maneira de filosofar, com a fusão da filosofia com a vida, não é questão alucinada de quem gosta do sofrimento, mas daquele que o aceita, não o sofrimento em si, mas a vida como ela é, como toda criação que é gerada pela dor: o parto, as obras-primas da arte, as criações do homem primitivo que inventou suas armas, que dominou o fogo após o terror das feras e dos inimigos. A arte nesse sentido como uma questão de vida ou morte.
A arte ao invés da crença, a vida na sua plenitude ao invés da sua negação e da repressão dos sentimentos, pois é sabido que muitos dos males psicológicos e físicos surgem daquilo que reprimimos, os “maus pensamentos”. E assim faz sentido o famoso aforismo de Nietzsche:” Aquilo que não me mata me fortalece”, nada de otimismo, mas de vontade de potência no sentido de aceitar qualquer dor que o devir nos apresenta e fazer dela a nossa vitória, como o guerreiro grego que vai de encontro à batalha. Se vencedor, novas terras serão conquistadas.
Veja o exemplo do cantor americano Israel Kamakawiwo'ole, como sua obesidade mórbida, ele fugiu à vida e foi refugiar-se nas suas limitações? Pelo contrário, criou arte, e mesmo na sua breve vida deixou algo de belo para o mundo.
Manuel Bandeira, com dezoito anos perguntou ao médico quanto tempo ele teria de vida, o médico o respondeu: "pode viver cinco, dez, quinze anos... Quem poderá saber?” E nisso, disse o poeta, foi vivendo, morre, não morre. E ele se abateu como o Anjo melancólico de Dürer? Não, foi escrever poemas. E são tantos os exemplos de obras de arte criada a partir do caos. Não só da obra de arte em si, mas da vida como obra de arte. Do caos que fez nascer o universo, ou da poesia de Nietzsche em que tudo o que foi dito aqui pode resumir-se: “Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si, para dar à luz uma estrela bailarina.”
Marcos Ribeiro Ecce Ars
Outono de 2011